Sobrinho francês se inspira em Roberto Drummond para criar HQ política

Robert Nilo
Robert Nilo
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Um acontecimento político crucial no país divide uma família mineira. Os irmãos Ramires e Severino se colocam em lados opostos quanto ao papel que as Forças Armadas devem ter na vida brasileira, e um deles entra em rota de colisão com o pai, Oswaldo Wallace, um homem alinhado ao pensamento (e à ação) de direita.

Soa como uma história recentíssima. Mas o cerne de “Chumbo”, HQ que o franco-brasileiro Matthias Lehmann acaba de publicar na França, remonta aos acontecimentos de 60 anos atrás, quando o golpe de 1964 levou os militares ao poder.

Ambientada na capital mineira, a história começa com um recuo à década de 1930 e segue até os anos 2000, mostrando as mudanças que ocorreram na cidade e na sociedade, principalmente a partir da instalação da ditadura militar.

Integralista, golpista e comunista
O patriarca Oswaldo Wallace é um ex-integralista. Ramires torna-se entusiasta do golpe militar, enquanto Severino, um jornalista comunista, se opõe ferozmente ao regime.

A ascensão da extrema direita no Brasil e em diversos outros países foi o que motivou Lehmann a acelerar a publicação de seu livro, cuja edição brasileira está em negociação.

Ao longo da história, Ramires acaba se tornando parte do sistema, convivendo com políticos, militares e torturadores. Já Severino adere à guerrilha, é capturado e torturado nos porões da ditadura.

Filho de uma brasileira e um francês, e sobrinho do jornalista e escritor Roberto Drummond (1933-2002), o quadrinista se inspirou no tio para criar a obra. “Na minha família havia divisões políticas, mas, na verdade, nem precisava da política para começarem as brigas”, diz Lehmann, entre risadas.

“É verdade que dois tios meus serviram de modelo para os personagens principais (Drummond é um deles), mas meu livro é, principalmente, de ficção. Apenas me inspirei nas situações e personalidades deles”, afirma.

Conforme o título sugere, “Chumbo” se concentra nos chamados anos de chumbo, época mais dura do regime militar, quando o Congresso foi fechado, parlamentares presos e cassados e a tortura foi largamente utilizada contra os opositores do regime.

O paralelo com o presente, no entanto, não é descartado. “Acho que essa situação de polarização, que também ocorre dentro das famílias, não é nem tanto algo que se repete, e sim algo que nunca para. O problema é que, quando aparecem políticos que querem criar mais divisões, como Bolsonaro ou Trump, a situação piora em todas as camadas da sociedade, começando pelo núcleo familiar”, diz o quadrinista.

Pesquisa histórica
Para escrever “Chumbo”, Matthias Lehmann, de 45 anos, mergulhou em livros e textos sobre o período da ditadura militar brasileira, tanto de críticos do regime quanto de defensores.

Ao longo das 360 páginas da HQ, há referências à historiadora mineira Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, ao jornalista Elio Gaspari, autor de cinco volumes sobre a ditadura militar brasileira, ao general Olympio Mourão Filho, que iniciou a movimentação de tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro no dia do golpe, em 1964; e ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Para a parte gráfica, Lehmann se inspirou em artistas plásticos como Tarsila do Amaral, Alberto da Veiga Guignard e Cândido Portinari.

“Minha relação com o Brasil é principalmente com Belo Horizonte. Minha mãe é brasileira, mineira, e foi morar na França há 50 anos, mas com bastante saudade de sua família e de seu país. Então ela me transmitiu esse amor pelo país, pela língua e pela cultura”, diz o quadrinista.

Fã confesso dos quadrinhos dos franco-belgas André Franquin, F’murr e Fred, autor da HQ “Philemon”, e, posteriormente, admirador das HQs underground da editora francesa L’association e dos artistas canadenses Julie Doucet e Henriette Valium, Lehmann faz uma obra de estilo semelhante e que tem a característica de apresentar o Brasil aos estrangeiros.

“Os franceses que descobriram ‘Chumbo’ me contam que aprenderam muito sobre o Brasil. E, de fato, com toda a pesquisa que fiz para escrever este livro, também aprendi muito sobre o país”, comenta.

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